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Artigo | Pinkusfeld & Maccari | Harmonização Fiscal Monetária: necessidade ou armadilha?


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BASTOS, Carlos Pinkusfeld; LARA, Fernando Maccari.

Hermonização Fiscal Monetária: necessidade ou armadilha. Boletim CICEF/CORECON-RJ. Publicado em: 30 maio 2023. Disponível em: https://centrocelsofurtado.org.br/arquivos/file/Artigo_BoletimCICEF(2023_05_30).pdf. Acesso em: .

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Harmonização Fiscal Monetária: necessidade ou armadilha?[1]

 
 

Carlos Pinkusfeld Bastos[2]

Fernando Maccari Lara[3]

 

 

No bojo da campanha de lançamento do seu arcabouço fiscal, o Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mencionou que este seria importante para uma “harmonização da política fiscal e monetária”. A expressão está longe de ser autoexplicativa e há um problema a ser enfrentado por quem pretende explicá-la: a diversidade de sentidos que pode assumir, a depender de qual das diferentes abordagens teóricas possa estar sendo considerada. Boa parte das vezes os princípios, as relações de causalidade e os resultados esperados das diferentes políticas são profundamente irreconciliáveis entre as diferentes teorias econômicas. Essa é a importância de um debate prévio que explicite hipóteses, relações causais e, no caso de políticas econômicas, que se defina quais os resultados almejados. Somente dessa forma a eventual aderência à realidade de uma trajetória esperada na execução de política econômica pode ser avaliada.

Analisando mais especificamente, entretanto, outras declarações e movimentos do atual Ministro da Fazenda, tudo nos leva a crer que o uso que tem sido feito da referida expressão esteja baseado na hipótese de que a pretendida política fiscal, consolidada no Novo Arcabouço Fiscal, constitui elemento necessário para que o presidente do Banco Central venha a reduzir a taxa básica de juros. Buscamos explorar e discutir essa conexão nos parágrafos que se seguem.

Comecemos pelos motivos que são apontados para os juros elevados. Segundo o presidente do BACEN, a taxa básica de juros está no atual nível devido à necessidade de combater uma suposta inflação de demanda. Duas questões merecem debate nesse contexto: a) existe pressão de demanda na inflação brasileira atual? b) em caso positivo, o que teriam o as finanças públicas e, mais especificamente, o novo arcabouço fiscal, a ver com tal fenômeno?

Iniciamos pela segunda pergunta, com uma resposta mais sintética. Supõe-se, em uma narrativa bastante popular entre os economistas, que ao gastar demais e/ou tributar de menos, o governo estaria injetando liquidamente poder de compra na economia e causando um desequilíbrio macroeconômico: um excesso de demanda em relação ao que se pode produzir. Por essa concepção, um ajuste fiscal com redução do déficit primário, seria uma forma de reduzir este excesso de demanda e a suposta pressão inflacionária. Assim se abriria espaço para a redução da taxa de juros.

Mas, também podemos perguntar: existe este excesso de demanda? Os economistas têm à sua disposição uma série de indicadores que permitem analisar esta questão com alguma objetividade. Basicamente, examinam-se as condições de dois mercados: o de bens e/ou serviços e o de trabalho.

O indicador mais amplo para análise das condições de produção de bens e serviços é o PIB. Considerando este agregado em termos anuais, o crescimento de 2,9% registrado em 2022 pode ser considerado um bom resultado, dado o histórico brasileiro recente. Na medida em que tal resultado é alcançado ao longo do ano, entretanto, podemos observar a dinâmica econômica sob uma perspectiva um pouco diferente. O ano de 2022 de fato começa com um trimestre particularmente forte, crescendo 1,3% em relação ao trimestre anterior. Ao longo do ano, entretanto, este mesmo indicador vai mostrando desaceleração passando de 0,9% no segundo para 0,28% no terceiro trimestre, encerrando o ano com uma contração de 0,22%. O que se observou, portanto, foi uma economia na qual a atividade econômica cresceu progressivamente menos, até contrair-se levemente.

Ainda não dispomos do dado do PIB relativos ao primeiro trimestre de 2023, mas sim dos resultados das pesquisas específicas do IBGE para o comércio, os serviços e a atividade industrial. Com base nesses dados podemos ter uma ideia sobre o que de novo pode ter ocorrido nestes primeiros meses do ano. No caso do comércio, verifica-se um crescimento de 2,03% frente ao trimestre anterior e um crescimento de 2,4% frente ao primeiro trimestre de 2022. Assim, tomando-se como base o crescimento anual registrado em 2022 não há uma aceleração da atividade do setor, mas, em termos do impacto no conjunto do PIB, podemos considerar que o setor dará uma contribuição positiva.

O caso dos serviços tem uma particularidade que precisa ser considerada. No critério do trimestre contra o imediatamente anterior, verifica-se uma pequena contração (-0,31%), mas no critério de comparação com o mesmo trimestre do ano anterior, temos uma elevação mais robusta (5,85%). Tal constatação poderia sugerir, no caso deste setor, seria mais plausível postular alguma pressão de demanda. Contudo, é preciso notar, de uma perspectiva mais ampla, que o nível de atividade do setor alcançou somente nesses últimos meses o patamar que se verificava em 2014. A hipótese de pressão de demanda equivaleria a dizer, portanto, que a capacidade do setor em responder à demanda é hoje equivalente à que existia há quase uma década.

Com respeito à indústria, são até desnecessárias maiores ponderações. O setor apenas reproduz seu mau desempenho que, infelizmente, já vem se tornando histórico. Nos dados recentes o setor cresceu apenas 0,01% em relação ao trimestre anterior e decresceu 0,37% em relação a março de 2022. E esse estado de estagnação se processa a um nível de produção que é cerca de 16% menor do que o de março de 2014. Finalmente um indicador fundamental em relação ao desempenho da indústria é o grau de utilização da capacidade instalada. Em março do ano corrente este valor foi de 79,2%, que historicamente ainda se encontra um pouco abaixo do nível considerado normal que é de 80%. No curto prazo, aliás, o grau de utilização vem caindo desde março do ano passado e o último pico, que foi de 82,2% ocorreu em abril de 2021.

Em resumo, quando consideramos os dados de produção, torna-se muito difícil concluir que haja um excesso de demanda em relação à capacidade de resposta do sistema produtivo. O que se observa é: ou um ritmo de crescimento bastante lento e equivalente ao padrão da própria economia brasileira após a crise de 2015/16, ou um crescimento mais rápido no segmento que somente agora alcança o pico registrado antes daquela crise. Conforme se observou, os serviços demonstraram uma recuperação robusta após a pandemia, mas somente agora o setor atinge o patamar de atividade registrado antes da recessão de 2015/2016. Tal comportamento inclusive é bastante semelhante ao que ocorreu com o PIB como um todo, no mesmo período. O nível de 2022 é apenas 1,74% superior ao registrado em 2014.

Quanto ao mercado de trabalho, trata-se de uma situação um pouco mais complexa. Ocorreu, conforme os dados da PNAD, uma persistente redução da taxa de desemprego ao longo de 2022. Esta taxa caiu de 11,1% no quarto trimestre de 2021 para 7,9% no quarto trimestre de 2022, voltando a subir para 8,8% no primeiro trimestre de 2023.

Este ponto envolve um nexo teórico-empírico importante para a interpretação da conjuntura, que é a utilização do conceito de NAIRU, uma taxa de desemprego que não acelera a inflação. De acordo com a interpretação convencional, esta elevação recente da taxa de desemprego pode ser interpretada como desejável e refletindo a promoção, pela política monetária, de um choque de demanda negativo que visa reverter um processo aceleracionista da inflação, obviamente, supondo-se que a NAIRU esteja acima da taxa de desemprego atual.

Não é o objetivo deste texto discutir exaustivamente nem a teoria por trás da chamada NAIRU, tampouco a sua estimação. Entretanto, alguns elementos podem ser apontados para explicitar a postura um tanto extremista que a sua utilização acaba conferindo à política monetária. A primeira é a hipótese de que há uma conexão direta de repasse total da inflação passada ou esperada para a inflação corrente. A assim chamada inércia inflacionária vem sendo apontada pelo BCB como um dos principais componentes da elevação dos preços. É evidente que essa transmissão em alguma medida sempre existe, refletindo principalmente o repasse da elevação dos custos em termos nominais para os preços, mas as estimativas empíricas sugerem que na economia brasileira ela seja sistematicamente parcial ou incompleta.

Em vários meses, especialmente no segundo semestre de 2022, a inflação no setor de serviços, que é mais intensivo em trabalho, vem apresentando valores acima do IPCA cheio, e a adoção da hipótese extrema da inércia completa, se tomada como indicador de política radical anti-inflacionária, pode ter efeitos distributivos e sobre o produto bastante nocivos.

Sabidamente, a inflação brasileira que caracteriza o período da pandemia foi causada essencialmente por choques de preços internacionais e câmbio, afetando de forma extremamente desigual os diferentes setores e provocando importantes mudanças de preços relativos que favoreceram principalmente a agropecuária em relação ao conjunto da economia, mas também a atividade industrial em relação aos serviços.

Tal circunstância se deu sobretudo em função da ausência de correção dos salários nominais diante dos choques de preços verificados em 2020 e 2021. Segundo os dados da PNAD, entre o terceiro trimestre de 2020 e o quarto trimestre de 2021, o salário médio real se contraiu em cerca de 14%. Ao longo do ano de 2022 houve uma recuperação desse poder de compra e o nível do salário médio real voltou a um patamar que é semelhante tanto ao do pré-pandemia, quanto ao que vigorava antes da recessão de 2015/16.

A não ser que houvesse uma contração muito importante da produtividade do trabalho, esse comportamento não sugere qualquer pressão de redução de margens de lucro por aumento do custo do trabalho. Estimativas sobre produtividade envolvem algumas dificuldades, mas, considerando-se um indicador abrangente para avaliar essa possibilidade, constatamos que o PIB por trabalhador ocupado se encontra em nível idêntico ao que se encontrava ao final de 2019, o mesmo ocorrendo com os rendimentos médios reais que, conforme observado acima, oscilaram significativamente, mas também retornaram ao seu nível pré-pandemia. Dessa forma, as condições conjuntas de salário real e produtividade do trabalho parecem encontrar-se muito semelhantes às condições de 2019, quando a inflação era extremamente baixa e não se cogitava qualquer tipo de pressão salarial.

Ocorre que, conforme se observou acima, o setor de serviços é o mais intensivo em trabalho, de modo que um crescimento dos salários nominais acima da inflação tende a afetar relativamente mais os custos desse setor e assim é nele também que a inflação tende a se manifestar de forma mais intensa.

Por esse raciocínio fica claro que, diante da magnitude dos choques de preços que se abateram sobre a economia brasileira em 2020 e 2021, e que não foram completamente revertidos, uma inflação mais alta em serviços é também uma consequência natural de alguma mínima normalização das condições distributivas, as quais foram perturbadas pelos significativos choques externos. Há que se levar em consideração que alguns preços administrados como dos planos de saúde e de outros segmentos específicos, como passagens aéreas, por exemplo, também contribuíram para esse resultado sem que fossem resultado de pressões salariais, enfraquecendo ainda mais o argumento que defende que a elevação do preço de serviços seja consequência de um excesso de demanda.

Ao invés de elevar drasticamente a taxa de juros para criar um choque de demanda negativo que contenha a inflação de serviços, o mais razoável seria realmente, como muitos têm argumentado, ajustar para cima a própria meta de inflação, permitindo que a recuperação da atividade possa conviver com a recuperação dos preços relativos e dos salários reais.

Buscando sintetizar o que argumentamos até aqui, não parece existir base para postular um excesso de demanda na economia brasileira. No que diz respeito à produção de bens e serviços, não há uma dinâmica de crescimento distinta daquela que vigorava antes da pandemia e para a qual mesmo um crescimento lento da capacidade produtiva parece suficiente para atender. Já, no mercado de trabalho, a taxa de desemprego caiu bastante ao longo do ano passado, mas voltou a subir e ainda se encontra em patamar superior ao que se verificava antes da recessão de 2015/16. Diante de algumas mudanças estruturais importantes que também se observam ao longo desse período, como a inexistência de qualquer crescimento absoluto dos empregos com carteira assinada, contrastando com uma dinâmica explosiva das ocupações por conta própria, também não é factível que a economia brasileira esteja minimamente próxima de uma situação de escassez de trabalho.

Por essa ótica, parecem justificadas as cobranças que têm sido feitas à gestão da política monetária, que tem explicitamente buscado arrefecer a recuperação da economia e elevar a taxa de desemprego

Note-se que até agora apresentamos questões relativas aos fluxos de gasto e arrecadação, cujo impacto sobre a inflação se daria, na visão convencional, por meio de um excesso de demanda. Curiosamente, entretanto, os argumentos que embasam o novo arcabouço fiscal parecem se concentrar na discussão sobre uma questão diferente, a trajetória da dívida pública, cujas relações de causalidade teórica com a inflação são de natureza bastante distinta.

Ainda que certamente essa questão mereça um aprofundamento, dado ser habitualmente muito mencionada, mas nada explicada, não iremos fazê-lo nesse texto, em função de sua maior complexidade. Entretanto, um ponto central pode ser colocado. A taxa básica de juros não pode ser afetada pela trajetória do estoque de dívida, porque ela é uma decisão unilateral do Banco Central. Pela visão convencional, o Banco Central deveria reduzir a taxa de juros caso a política fiscal eliminasse os supostos focos inflacionários resultantes de desequilíbrios nos fluxos de gasto e tributação. E ele teria que fazer isso independentemente da trajetória de dívida pública, que depende daqueles fluxos, mas também de outros fatores como a taxa de financiamento do governo, estabelecida nos leilões do tesouro, e o crescimento da economia.

Levados em consideração todos estes argumentos, sejam os mais concretos (porém implausíveis na atual conjuntura brasileira, como a existência de um excesso de demanda), sejam aqueles cuja discussão foge ao escopo deste texto, mas, curiosamente, também do debate público, é bastante plausível supor que um ciclo de redução dos juros, ainda que tardio, deverá ser iniciado em algum momento.

Há pelo menos quatro elementos a considerar diante dessa questão: em primeiro lugar, há que se refletir, de uma posição independente em relação aos argumentos convencionais, se não há algum outro limite para uma política monetária orientada a reduzir a taxa de juros. Em segundo lugar, faz-se necessário avaliar a intensidade da transmissão entre a taxa básica de juros e aquelas taxas que efetivamente contam para o tomador de crédito. Um terceiro aspecto é intensidade da resposta da demanda de crédito diante de uma queda das taxas de juros na ponta. Por fim, qual poderia ser o tamanho desse aumento do gasto financiado por crédito no total do gasto e o seu potencial impacto na demanda agregada como um todo.

Sobre o primeiro ponto, entende-se que o espaço de redução dos juros limitado, mas não pelas razões frequentemente mencionadas pelo Banco Central. Um conjunto relativamente grande de circunstâncias determina a cada momento o nível da taxa de juros acima da qual o próprio BCB não cria problemas para a estabilidade do câmbio e da inflação. Ainda que complexo, esse problema pode ser de algum modo sintetizado por um indicador que é referido como piso para a taxa básica de juros Ele é dado pela soma da taxa básica do FED com um indicador de risco externo. Nas condições atuais avalia-se que esse piso se encontra, na melhor das hipóteses em torno de 7,6%, implicando que haveria de fato um espaço para uma redução, mas no máximo de algo em torno de seis pontos percentuais. Dependendo da natureza dos fluxos de capital este piso pode ser ainda mais alto, e certamente um processo de redução seria gradual e respondendo à própria trajetória das variáveis-chave mencionadas acima.

Isso posto, há que se investigar qual o efeito que poderia fazer essa redução de seis pontos percentuais sobre as taxas de juros que são efetivamente praticadas nas diferentes modalidades de crédito, para o tomador final. A análise dos dados referentes ao mercado de crédito brasileiro sugere que, quando a taxa básica cai, de fato reduzem-se também as taxas cobradas para os tomadores finais na maior parte das modalidades. Entretanto, verifica-se também uma relação inversa muito sistemática entre a taxa básica de juros e a razão entre as taxas das modalidades e a taxa básica de juros. Isto significa que a transmissão entre a redução da taxa básica e as taxas para tomadores finais é bastante parcial. No segmento de crédito para aquisição de veículos, por exemplo, cálculos preliminares sugerem que a redução de seis pontos percentuais na Selic levaria a uma redução de algo em torno de três pontos percentuais. Partindo do atual patamar de cerca de 28%, não parece que isto possa gerar algo tão extraordinário em termos de dinamização da demanda por aquisição de novos veículos.

Ainda que haja esse comportamento dos spreads, é certo que, se os juros básicos baixarem, alguma redução haverá do custo do dinheiro na ponta do tomador. Qual seria, então, seu impacto macroeconômico? Como dito acima o efeito depende da elasticidade de demanda das diversas modalidades de crédito em relação à sua taxa de juros.

Um fato estilizado já bem conhecido na literatura internacional é a baixa, ou até nenhuma, elasticidade do investimento privado em relação à taxa de juros, respondendo mais fortemente à expectativa de demanda ou à perspectiva de vendas da empresa. Além disso há alguns segmentos importantes no mercado de crédito brasileiro nos quais a relação entre taxa de juros e a concessão de novos créditos não é tão clara e, no período mais recente, tem até mostrado uma associação direta e não inversa. É o caso, por exemplo, dos segmentos de cartão de crédito rotativo, cartão de crédito parcelado e cheque especial, nos quais a concessão de crédito aumenta, ao invés de cair, com o aumento da taxa de juros. Tal dinâmica reflete muito provavelmente uma deterioração das condições financeiras das famílias, que acabam recorrendo a estas linhas de crédito cujas taxas de juros são extremamente altas, ultrapassando os 100% ao ano.

Nesse sentido, a expectativa de resposta das concessões de crédito diante de reduções das taxas de juros concentra-se efetivamente no crédito para pessoas físicas que possa afetar o mercado de duráveis e, especialmente, o financiamento imobiliário, um importante componente para dinamização da construção civil. Podemos ter uma ideia do que se pode esperar desses segmentos destacando o que neles ocorreu no último ciclo de redução da Selic. Em dezembro de 2016 as concessões para aquisição de veículos representavam 1,14% do PIB e alcançaram um pico de 1,7% do PIB em junho de 2021. Já as concessões para financiamento imobiliário subiram de 1,32% do PIB, posição de dezembro de 2016, para um pico de 2,1% do PIB, alcançado em dezembro de 2021.

Pode-se observar que as concessões para financiamento imobiliário e aquisição de veículos alcançaram juntas uma magnitude máxima de quase 4% do PIB. Considerando, de forma um pouco mais otimista, que todo o crédito não rotativo possa ser potencializado pela redução da taxa de juros, temos um montante que no último ciclo de redução da Selic subiu de 6% do PIB para pouco mais de 7% do PIB.

Diante dessas considerações, não se nega que uma redução da taxa básica de juros possa em alguma medida ajudar a dinamizar o consumo das famílias e o investimento residencial, seja pela elasticidade da taxa de juros sobre as concessões de crédito, seja por algum alívio nos compromissos financeiros das famílias já endividadas em segmentos de elevado custo. Entretanto, os mecanismos de transmissão da taxa básica para as taxas das diferentes modalidades de crédito, as elasticidades e os tamanhos relativos dos mercados que tendem a ser afetados precisam ser considerados com mais profundidade. Uma avaliação preliminar destas questões nos sugere que não se pode esperar um impulso de demanda tão grande de uma redução da taxa básica de juros que esteja dentro de um intervalo seguro do ponto de vista dos limites externos discutidos acima.

Podemos voltar então à pergunta inicial deste texto, a qual trata do sentido da tão propalada harmonização fiscal monetária. Seguindo os argumentos aqui apresentados, a redução de juros prescindiria de ajustes fiscais prévios. O excesso de demanda que sustenta a ideia de que a taxa deve permanecer no atual nível de fato não existe. A redução da taxa de juros tem, na perspectiva aqui adotada, limites em termos de um piso seguro para a sua redução, discutido acima. Por outro lado, a associação da redução dos juros com a política fiscal, pelos argumentos aqui apresentados é espúria. Pior: ajustes fiscais podem, como têm feito reiteradamente, comprometer o crescimento e, dependendo de outros parâmetros em vigor na economia brasileira, dificilmente seriam compensados por crescimentos espetaculares do gasto financiado por crédito, capazes de dinamizar a demanda agregada como um todo.

Apesar do Novo Arcabouço Fiscal ter uma curta duração, apenas o mandato deste governo, sendo que seus parâmetros poderão mudar a cada ano, é curioso perceber que combinando a taxa máxima de crescimento do gasto público e seu desejo de crescimento doméstico maior que a média mundial, no fundo o ministro está defendendo que, segundo seus princípios de política econômica, a participação do gasto público caia em proporção do PIB, um estranho eco da recém substituída regra do teto. Há, na concepção assumida, uma implícita negação de uma tese que parecia cara a seu partido que é a aposta na construção de um estado de bem-estar social no Brasil, tão bombardeada por seus opositores.

Há também um certo, esquecimento, ou desconhecimento, de que uma taxa mais baixa do crescimento do gasto público exerce uma força depressiva sobre o crescimento da demanda agregada, ou seja, do PIB. Estranho esquecimento, dado que a aceleração do período Lula se aproveitou do crescimento das receitas para, então, turbinar o crescimento econômico com aceleração do gasto público sem comprometer os parâmetros fiscais definidos pelo próprio governo, ou seja, o superávit primário.

A imagem que o debate público, e especialmente a cobertura da imprensa, passam para o público sobre a “harmonização” é que se trata de uma promessa e depois um compromisso de fazer ajuste fiscal, para o Banco Central ter a “possibilidade” de fazer uma política monetária mais expansionista. Segundo a análise aqui esboçada esta estratégia provavelmente não irá resultar nos benefícios prometidos, via um efeito do crédito, e significa, isso sim, a autocontenção de alguns dos mais importantes e efetivos meios pelos quais se pode promover o crescimento econômico e o desenvolvimento: o gasto público. Não é que não se deva reduzir a taxa de juros. Há sim espaço para reduzi-la. O que não se pode é comprometer um outro instrumento, a política fiscal, apenas por causa disso, adotando uma posição equivocada do ponto de vista empírico, e politicamente defensiva, segundo a qual só se pode fazer uma coisa, redução dos juros, se houver uma política fiscal austera. Para tornar essa opção ainda mais inadequada, vale anotar que não sofremos de um problema de restrição externa, falta de fluxo financeiro ou mesmo forte endividamento externo, como em situações críticas do passado e presente em outros países da América do Sul. A tal harmonização parece ser a autoimposição de restrições ao crescimento a partir de base teórica discutível e de rarefeita fundamentação empírica, e sobretudo total esquecimento do que deu certo nos bem-sucedidos mandatos do próprio presidente Lula.

 
           
 


 

[1] Os autores são integralmente responsáveis pela veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo conteúdo deste artigo, não refletindo necessariamente a opinião institucional do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento (CICEF) e do Conselho Regional de Economia (CORECON-RJ). A pesquisa, cujos resultados parciais são expostos no documento, integram o projeto “A inserção do Brasil no século XXI e seu desempenho macroeconômico”, apoiado pelo CICEF e pelo CORECON-RJ.

[2] Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Economia. Doutor em Economia pela New School for Social Research, Estado Unidos. Presidente do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

[3] Professor Assistente da Universidade Federal do Vale do Rio dos Sinos, graduação em Ciências Econômicas. Doutor e Mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; graduado em Economia pela Unisinos. Analista Pesquisador em Economia do Tesouro do Estado do Rio Grande do Sul. 






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